domingo, 22 de julho de 2007

declaração de amor ao cinema

Atingir a simplicidade aliada à qualidade é tarefa muito mais difícil do que parece. Tanto que Jorge Furtado, um dos melhores e mais criativos cineastas do Brasil, precisou de quatro longas para resolver esta equação. Mas o fez, com “Saneamento Básico”, um filme engraçado e inteligente que, no dizer do próprio cineasta, é “uma declaração de amor ao cinema” (não confundir declaração de amor com chatice militante).

Depois de realizar ótimos curtas como “O dia em que Dorival encarou a guarda”, “Esta não é a sua vida”, “Ângelo anda sumido”, “Sanduíche” e, claro, “Ilha das Flores”, além de trabalhos legais para televisão, Furtado realizou três longas decepcionantes. Tanto “Houve uma vez dois verões” quanto “O homem que copiava” e “Meu tio matou um cara” têm elementos de criatividade e competência, porque Furtado é um ótimo cineasta, mas todos pareciam não fazer jus ao potencial do diretor. Parecia que o cineasta gaúcho se conformara a reproduzir o esquema de comédia do núcleo Guel Arraes da TV Globo e, por outro lado, não havia se desembaraçado do esquema narrativo que o consagrou em Ilha das Flores. Em suma, parecia faltar fome artística a Furtado.

Saneamento Básico prova que é possível fazer um filme inteligente, engraçado e de apelo popular, não um apelo que faz concessões aos ditames estéticos e narrativos já constituídos, mas que convida o espectador a participar do filme, em vez da atitude arrogante que se vê por aí dizendo: “sou um cineasta inteligente e meus filmes só podem ser vistos por pessoas cultas (ou cult, para soar mais cult)”. Nem isso e nem “faço filmes bobinhos e rasos porque o que o povão quer é mais do mesmo”.

O filme serve também como um manual prático de cinema para iniciantes, com problemas com que qualquer pessoa que já se aventurou a produzir uma obra audiovisual já enfrentou. A história se passa em um lugarejo no interior de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. A comunidade tenta solucionar o problema com a fossa sanitária, que expele um cheiro horroroso. Na prefeitura, recebem a resposta de que não há verbas para obras de saneamento básico, mas existe um financiamento de 10 mil reais do Ministério da Cultura para a produção de um curta. A idéia é fazer um vídeo qualquer para usar o dinheiro na obra. O único porém é que aquelas pessoas não sabem absolutamente nada sobre cinema. Ao saber da exigência do edital de que a produção deve ser de ficção, imaginam que precisam fazer uma ficção científica. A idéia, que parece à primeira vista uma insensatez, vai ganhando força e, principalmente, o entusiasmo dos envolvidos.

No início, a única pessoa que se engaja para a produção do vídeo – mesmo assim com o único objetivo de resolver o problema da fossa – é Marina, a personagem de Fernanda Torres. O primeiro a comprar a idéia é Joaquim, o marido de Marina, vivido por Wagner Moura. Silene (Camila Pitanga), a fútil e bela irmã de Marina, vê no projeto uma forma de extravasar sua vaidade e quem sabe catapultar uma carreira de modelo, e Fabrício (Bruno Garcia), proprietário de uma pousada no local e namorado de Silene, é o dono da câmera, e só aceita participar da filmagem por temor de que estraguem o equipamento. Otaviano (Paulo José), pai de Marina, é um velho e desiludido veneziano de uma família nobre e decadente. Teve educação, ouve ópera, mas ganha a vida fabricando móveis nos confins do Rio Grande do Sul. Aos poucos, todos vão sendo seduzidos pela construção do vídeo, que ganha fôlego com a entrada de Zico (Lázaro Ramos), dono de uma produtora de vídeo em Bento especializada em aniversários e casamentos.

Saneamento Básico não tem um personagem principal, cada um tem mais ou menos a mesma importância no filme. E um dos motivos de Saneamento Básico ter dado certo é a complexa particularidade de cada personagem. Não há tipos, cada um possui suas vicissitudes que garantem a singularidade. Quem mais corre o perigo de tornar-se um tipo é Silene com seu sonho de celebridade, mas não chega a cair no estereótipo. Ela difere muito da irmã, cujo investimento não é em si próprio, mas em um projeto que melhorará a vida de todos. Os atores sem dúvida foram importantíssimos para a composição dos personagens. A máxima de Hitchcock, “ator é gado”, não é compartilhada pelo diretor de Saneamento Básico.

É um filme que pode ser visto por vários vieses, inclusive opostos. E isso é o que confere qualidade artística a uma obra. Inúmeras “caixas de diálogo” surgem ao longo da projeção. Quem está interessado em apenas uma história boa e bem contada, fica satisfeito. Mas quem acha que um filme deve “levantar questões”, também é um prato cheio. Um país pobre, com chagas sociais gritantes, pode dar-se ao luxo de despender milhões e milhões de reais para a produção de cinema? Obras de saneamento são mais importantes que o investimento em cultura? O esforço pessoal para obter resultados coletivos vale mais a pena do que o auto-investimento? Essas e muitas outras questões estão presentes no filme, sem resposta. A única afirmação é a do poder que a cultura (especificamente o cinema) tem de transformar as pessoas.


O trailer do filme:



Entrevista de Furtado à Carta Capital no blogue OutroCine

7 comentários:

mulher de sardas disse...

eu e a família toda estamos loucos para ver saneamento básico desde que assistimos o trailer em não por acaso.

acho que a excursão sai esta semana!

e quanto ao texto, só discordo de colocar era uma vez dois verões na mesma sacola. acho este muito bom!

beijinho.

Anônimo disse...

Cara, é isso aí . Exponha seu ponto de vista e não espere acordos. É hora do povo abrir os olhos. Li os posts e gostei do que falou do acidente.Parabéns@!

Mariane Monteiro disse...

Legal seu blog!! Gostei mt! Parabéns! Voltarei sempre! abraço.

Nessita! disse...

gostei muito de Saneamento Básico. Inclusive fiz uma matéria sobre o filme na sexta de estréia. É um roteiro simples, que te prende e até instiga. Teu texto está ótimo, uma excelente análise do filme! :D

Anônimo disse...

achei que só eu tinha gostado de saneamento básico...
adorei o blog. vou providenciar num link agora mesmo.
beijos!

disse...

Colega, amei o texto a respeito do filme do Furtado. Só elogiei ele no meu blog, mas sem entrar em detalhes. Tuas palavras foram perfeitas. Beijos.

Anônimo disse...

Por falta de sorte ou até mesmo informação...hehehe
Eu só tinha assistidos os ruins que citou, tais como:
“Houve uma vez dois verões”,“O homem que copiava” e “Meu tio matou um cara” ...hahahaha
Nem preciso dizer que me decepcionei,né?
Agora pela Bienal, tive a oportunidade de assistir "Saneamento básico" e simplesmente amei! hehe.
Nem acreditei que era de Jorge Furtado, que até então havia me deixado uma péssima impressão, por conta dos outros longas.
Mas é isso aí, com o "Saneamento básico" adquiri uma nova opinião sobre esse grande cineasta!
Quem não viu, vale à pena conferir!
Recomento!
E já vou providenciar os outros que citou...hehehe.

Abraço!