sexta-feira, 5 de setembro de 2008

carta ao pé do ouvido

O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
Ferreira Gullar



Era uma tarde de segunda-feira. Estávamos no centro da cidade. Tantas pessoas andavam, corriam, cruzavam, suavam. Estávamos próximos à estação rodoviária. Tantas pessoas chegavam, partiam, tantas ficavam. Próximos ao porto, tantos barcos ancoravam, tantos erravam, alguns talvez naufragassem. Estávamos perto das lojas populares. Tantas pessoas vendiam, compravam, pechinchavam, enganavam. Estávamos perto do mercado público. Tantas pessoas buscavam o que comer, o que beber, tantas buscavam não lembrar. Estávamos próximos à Rua da Praia. Tantas pessoas roubavam, tantas pessoas ofereciam bugigangas, cacarecos. Na praça, uns trocavam dinheiro por companhia, uns ofereciam o corpo por dinheiro. Estávamos próximos ao viaduto. Carros corriam, expeliam fumaça, barulho. Mas naquele instante, naquele sôfrego, urgente instante, não havia gente, não havia barulho, não havia fumaça, não havia nada. Éramos nós unidos como se nunca nos houvéssemos perdidos. Era eu, era tu, e estávamos sem relógio, sem pressa, sem hora. Dançávamos na gravidade da lua (havia um calçadão de Copacabana na lua), andávamos à beira-mar, estávamos no pico do Everest, estávamos no cânion da Fortaleza, num chalé à beira da lagoa dos Patos, flutuávamos numa gôndola em Veneza, éramos juntos em Eldorado, em Atlântida, encontrávamo-nos em Montauk, abraçavamo-nos na Praça Vermelha, na Sierra Maestra sem perder a ternura, brincávamos na infância, no sítio do pica-pau amarelo, pisávamos a areia de Itapuã, visitávamos Pompéia, a Acrópole, a catedral de Notre Dame, o Himalaia, a Cordilheira dos Andes, a Chapada Diamantina, o Rio Sena, bebíamos chope em um bar de pescadores numa praia distante, subíamos uma escada para o céu, eu te levava pela mão a correr por campos de morango. Para sempre. Éramos, para sempre éramos.