quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

duas quedas

Esse meu amigo, o F... não interessa, omito o nome para evitar constrangimentos. Basta dizer que ele tinha dois grandes orgulhos, evocados ao infinito no vaidoso intuito da jactância. Eis que esse meu amigo perdera de uma só vez as duas razões que alimentavam sua imodéstia. Foi assim: gremista aferrado, ficara chateado com o título de campeão da América conquistado pelo Inter, arqui-rival que ele tanto detestava. Chateado, mas não preocupado, porque tinha certeza de que ao disputar o Mundial, o Colorado não só não conseguiria bater o supertime do Barcelona como seria humilhado ao tomar uma goleada da equipe catalã.
Era tamanha a convicção que acertou com um grupo de amigos, todos gremistas, de assistirem juntos ao embate futebolístico. Para tanto, combinaram de passar a noite pelos bares e, às oito e meia da manhã, horário que começaria a partida disputada no Japão iriam para a casa de um deles degustar a irreversível derrota colorada.
Acontece que a noite, assim como o futebol e as mulheres, gosta de desafiar a lógica e de pregar peças nos humanos incautos, e eis que a beleza arrebatadora de uma ex-colega de escola, que ele tanto desejara e jamais havia conquistado, arrancou o nosso protagonista da mesa de seus companheiros, desfalcando a corrente anticolorada. Ele não faria falta, argumentou com o grupo, pois o jogo eram favas contadas.
Despediu-se prometendo presença na festa do título do Barcelona e se embrenhou na libidinosa mata do desejo, cujo destino não muito tortuoso foi a residência da dama. Não entendeu porque o permanente desprezo da moça nos tempos de colégio transformou-se em desejo arrebatador, mas o que importava era que finalmente a tinha conquistado, e o sabor das conquistas é proporcional às dificuldades de alcançá-las.
Quando entraram, ardentes, no apartamento, o sol já raiava, o que significava que os atletas de Barcelona e Internacional já corriam pelo gramado oriental disputando a taça mais almejada pelos clubes de futebol ao redor da Terra. Mesmo com a excitação do jovem casal, arranjou um jeito de pedir à amante que ligasse o televisor, e em meio a beijos, sussurros e suores, tentava prestar atenção ao jogo.
Tanto a batalha dos gramados quanto a da cama se encaminhavam para o final apoteótico. A garota, desfigurada de prazer, gemia cada vez mais alto. Porém, súbito, a voz do narrador pareceu tomar o ambiente: “O Inter vai pro ataque, o Inter se manda. Olha o Iarley, vamos nessa, olha a chance. Abriu pela direita. Olha o gol, olha o gol, bateu, olha o gol, olha o gol, olha o gol, olha o gol, olha o gol, olha o gol. Gooooooooooollllllllllllllll. Éééééééééééé do IIIIIIIInteeeeeerrrrrr”.
A partir desse momento, ele não ouviu mais nada. E nem fez mais nada. Tentou concentrar-se na batalha da cama, mas essa também já estava perdida, e ruíram no mesmo instante os dois grandes orgulhos do meu amigo: o de que o Grêmio era o único gaúcho campeão mundial e o de nunca ter brochado. Logo, foi-se embora com uma despedida sem graça, derrotado em meio àquela manhã vermelha de domingo.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Penelope Maria Elena Barcelona


Fui assistir Vicky Cristina Barcelona e pensei: vou escrever um texto sobre o filme para o blog. Só que eu estava lá, assistindo, e achando o filme uma chatice. Mas falar mal do Woody Allen é blasfêmia das mais cabeludas. Daí fiquei pensando o que eu poderia escrever. Eis que, lá pela metade da projeção, aparece a Penelope Cruz. E eu cá comigo: já sei o que botar no blog. Isso:

A Scarlett Johansson é bonita. Bonita mesmo. Mas a Penelope Cruz é infinitamente mais linda.

Ia escrever só isso. Mas não é que a partir do momento em que a espanhola entra em cena o filme começa a ficar legal? Começa a ficar mais Woody Allen. Maria Elena, a maluca com tendências suicidas interpretada por Penelope, é uma personagem tipicamente woodyalleniana. O cara foi buscar em uma personagem espanhola, vivida por uma atriz espanhola, um jeito de se encontrar consigo mesmo.
Impressionante como o velho nova-iorquino faz filmes tão parecidos e a gente não cansa, continua gostando igual. Vicky Cristina Barcelona saiu de Manhattan, a trilha sonora não é jazz, Woody Allen não atua, mas mesmo assim o filme tem a marca registrada de seu autor, aquilo que chamamos estilo, e que alguém classificou como a arte de plagiar a si próprio.
Dá-lhe Woody. Ainda bem que nem cogitei escrever algo de ruim sobre o filme.

domingo, 23 de novembro de 2008

Tua presença – não digo a presença
recriada nas coisas que se pensa
ou em cada canto do apartamento
– sim tua carne teu cheiro teu jeito

é-me uma jarra vazia ofertada
ao sedento, é gasolina lançada
para aplacar o incêndio na cidade
A cidade erma chamada saudade

domingo, 12 de outubro de 2008

allstar vermelho

Sabe aquele meu allstar vermelho que ficou na tua casa? Eu queria ele de volta. Não que eu ache que tu não vai devolvê-lo, mas é que, sabe, eu não costumo comprar muitos calçados, eu só tinha dois pares de tênis, e como o allstar vermelho está retido na tua casa, agora só tenho um, e pode chover. E tem outra: tu sabe que eu gosto daquele calçado, e eu ando pensando que eu deveria gostar mais de mim do que tenho gostado ultimamente, então achei que reaver o meu allstar vermelho podia ser um começo. E eu tenho andado tanto por aí mas parece que estou sempre indo para o lugar errado ou para o mesmo lugar ou então procurando algo que eu nem sei o que é. Talvez com meu allstar vermelho eu encontre um rumo ou ao menos meu caminho fique menos sem graça, porque às vezes mesmo quando a gente não sabe direito para onde está indo pode haver uma surpresa no caminho e esta surpresa pode ser boa mas não é o que tem acontecido. Mas para a surpresa ser boa a gente tem pelo menos que estar aberta a ela e para isso é preciso estar gostando de si mesmo. Quem sabe com meu velho allstar vermelho... Pensei que de repente tu pudesse me convidar pra ir à tua casa buscar meu allstar vermelho. Mas é claro que me vendo depois de tanto tempo tu me convidaria para entrar um pouquinho e eu titubearia um pouquinho mas aceitaria. E tu iria me oferecer uma cerveja e a gente ia conversar tanto e ia entender aquelas coisas do outro que ninguém entende. só a gente. Então a gente ia rir tanto e ia ser tão bom que eu iria embora tão embriagado, não só do álcool, que esqueceria do meu allstar. Daí eu iria te telefonar e antes de eu falar qualquer coisa tu diria já sei, esqueceu teu tênis aqui, pode voltar qualquer dia menos tal dia porque eu tenho uma reunião lá na ONG, quem sabe sábado, daí eu preparo uma janta para te esperar. E até sábado chegar eu não iria fazer nada direito, só esperando o grande dia e planejando o que te falar, mesmo sabendo que não adiantaria nada porque na hora eu nunca sei o que falar e acabo falando alguma bobagem ou então ficando quieto demais. Até que chegaria sábado e eu iria chegar cedo demais na tua casa e não entraria logo, ficaria andando pelo teu bairro até chegar a hora. E o jantar seria ótimo, e tantas bebidas tantas conversas tantas risadas que ficaria muito tarde. E tu diria que eu não precisava gastar em táxi, que passasse a noite na tua casa, assim ainda poderíamos assistir a um filme que tu alugou. Então tu faria para mim uma cama no chão ao lado da tua só que essa cama improvisada amanheceria intacta e nós apertados na tua cama de solteiro acordaríamos tão tarde e tão felizes que eu de novo esqueceria meu allstar vermelho, mas também, nem teria mais tanta urgência porque eu já estaria de novo gostando tanto de mim e também já não precisaria andar por aí sem rumo porque logo voltaria para junto de ti e me encontraria em teus braços como está perdido meu allstar vermelho na gaveta,entre os teus sapatos.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

carta ao pé do ouvido

O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
Ferreira Gullar



Era uma tarde de segunda-feira. Estávamos no centro da cidade. Tantas pessoas andavam, corriam, cruzavam, suavam. Estávamos próximos à estação rodoviária. Tantas pessoas chegavam, partiam, tantas ficavam. Próximos ao porto, tantos barcos ancoravam, tantos erravam, alguns talvez naufragassem. Estávamos perto das lojas populares. Tantas pessoas vendiam, compravam, pechinchavam, enganavam. Estávamos perto do mercado público. Tantas pessoas buscavam o que comer, o que beber, tantas buscavam não lembrar. Estávamos próximos à Rua da Praia. Tantas pessoas roubavam, tantas pessoas ofereciam bugigangas, cacarecos. Na praça, uns trocavam dinheiro por companhia, uns ofereciam o corpo por dinheiro. Estávamos próximos ao viaduto. Carros corriam, expeliam fumaça, barulho. Mas naquele instante, naquele sôfrego, urgente instante, não havia gente, não havia barulho, não havia fumaça, não havia nada. Éramos nós unidos como se nunca nos houvéssemos perdidos. Era eu, era tu, e estávamos sem relógio, sem pressa, sem hora. Dançávamos na gravidade da lua (havia um calçadão de Copacabana na lua), andávamos à beira-mar, estávamos no pico do Everest, estávamos no cânion da Fortaleza, num chalé à beira da lagoa dos Patos, flutuávamos numa gôndola em Veneza, éramos juntos em Eldorado, em Atlântida, encontrávamo-nos em Montauk, abraçavamo-nos na Praça Vermelha, na Sierra Maestra sem perder a ternura, brincávamos na infância, no sítio do pica-pau amarelo, pisávamos a areia de Itapuã, visitávamos Pompéia, a Acrópole, a catedral de Notre Dame, o Himalaia, a Cordilheira dos Andes, a Chapada Diamantina, o Rio Sena, bebíamos chope em um bar de pescadores numa praia distante, subíamos uma escada para o céu, eu te levava pela mão a correr por campos de morango. Para sempre. Éramos, para sempre éramos.

sábado, 23 de agosto de 2008

microcontos II

Encontrei esses na bagunça das minhas gavetas virtuais. Não lembro de tê-los escrito, mas lá vai.

MESA DE BAR
Horas a fio, esperando que a ausência se vá.

PESADELO
Sonhava dormir. Acordar duas vezes é demais.

GIRASSÓIS
Chuva. Cidade alagada. O jardim ficou à deriva.

REVOLUÇÃO
Matei o tirano, sobreviveu a tirania.

LEGÍTIMA DEFESA
Sei que é pecado violar uma tumba, mas eu estava perdendo a respiração.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ladrão de galinha

Estava escrevendo um texto sobre a decisão do STF de proibir algemas para os graúdos, mas lembrei de uma crônica do Verissimo de alguns anos atrás que diz tudo. Ei-la.

"Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e
levaram para a delegacia.
– Que vida mansa, heim, vagabundo ? Roubando galinha para ter o que
comer sem precisar trabalhar. Vai para cadeia!
– Não era para mim não. Era para vender.
– Pior. Venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio
estabelecido. Sem-vergonha!
– Mas eu vendia mais caro.
– Mais caro?
– Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as
minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as
minhas botavam ovos marrons.
– Mas eram as mesmas galinhas, safado.
– Os ovos das minhas eu pintava.
– Que grande pilantra...
Mas já havia um certo respeito no tom do delegado.
– Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...
– Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais
boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços
dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos
de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio.
Ou, no caso, um ovigopólio.
– E o que você faz com o lucro do seu negócio?
– Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei
alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui exclusividade no
suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do governo e
superfaturo os preços.
O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a
cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois
perguntou:
– Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está
milionário?
– Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que
tenho depositado ilegalmente no exterior.
– E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?
– Às vezes. Sabe como é.
– Não sei não, excelência. Me explique.
– É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa.
Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma
coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me
sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui preso,
finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova.
– O que e isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.
– Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
– Sim. Mas primário, e com esses antecedentes..."

Luís Fernando Verissimo

domingo, 10 de agosto de 2008

a alça do esquife

Existem fatos que nunca escapam da memória. Podem ficar meses, anos submersos na consciência. Mas um dia, sem aparente razão, eles emergem e ficam ali, reivindicando posto na biografia de seu tutor. Não raro surge em mim o cenário do primeiro funeral a que compareci, o de minha avó. Rapazote que ainda não perdera a ilusão de que a vida se leva na flauta, dirigi-me ao cemitério ensaiando ares de tristeza que deveras não sentia. Tinha a idéia da solenidade de tais eventos e vagamente me censurei pela ausência de sensibilidade própria à situação. Sentia-me desprotegido ao ver minha mãe chorando e era só isso que me desgostava no momento.

Logo à entrada, achei bonito o desfile de óculos escuros, lenços e olhos marejantes. O salão onde se realizava o velório recendia a flores, café e vela. Uma fileira de cadeiras parecidas com as de salas de aula se estendia em todo entorno do recinto. Pessoas, em duplas ou trios, conversavam em voz baixa. Uma parenta distante alegou tonturas e deixou a sala às pressas. Minha mãe foi conferenciar com a minha tia. Ao longe, parecia que elas disputavam quem trazia os olhos mais inchados.

Ao centro do salão, jazia o corpo de minha avó, acomodado no estofamento interno de um caixão muito escuro, com flores e coroas ao redor. Aproximei-me lentamente e vi dois chumaços de algodão tapando os orifícios do nariz. Decorridos todos estes anos, há detalhes que estão marcados em minha memória de maneira cinematográfica, e outros que se perderam nos desvãos da consciência. A roupa que trajava minha avó, por exemplo, ignoro. Mas suas mãos trançadas segurando um rosário são tão reais no pensamento que parecem estar ainda agora diante de meus olhos.

O mais interessante das reminiscências, porém, são as de conceitos. Ao ver minha avó deitada no esquife, tive a plena certeza de que não era ela que estava ali. De que tudo de peculiar, idiossincrático e próprio da velha faltava naquele corpo. Não sou dado a espiritismos ou teologias, mas ali eu percebi que o que minha família velava não era nada. Era apenas matéria desprovida de ser, como uma palavra a que não se pode conferir nenhum significado. Se eu avistasse minha avó em meio ao séqüito que dali a pouco acompanharia a condução do féretro até a sepultura, não me causaria terror, tamanha era a ausência dela naquele defunto.

Nunca tive maiores intimidades com minha avó. Aliás, ela era uma pessoa que não se prestava a intimidades com ninguém. Muito rígida quanto às questões disciplinares e ferrenha guardiã da magra aposentadoria que recebia – não mencionarei a palavra avara porque funeral é o momento de exaltar as qualidades positivas do morto e enterrar as negativas junto com seu corpo. De pouco falar e menos ainda de escutar, minha avó me dedicava, creio, menos afeto do que a uma outra neta, minha prima. Motivos para isto há, mas não é o caso de arrolá-los. Digo apenas que, apesar destas considerações, minha avó me despertava certo fascínio que, àquela época, eu não entendia. Mas as ruminações que me tomaram a partir de seu enterro me esclareceram. O que me fascinava – e de resto creio que fascinava a todos que com ela conviveram – era seu gênio forte de égua indomável. A faísca do seu olhar e o tijolo da sua voz imperavam, sempre. Por vezes, excedia-se e flertava com a crueldade, mas como já foi dito, é das virtudes que se fala nessas horas.

Pois foi naquela tarde ensolarada e fria de agosto que percebi a realidade das pessoas que partem. Não se sente saudade das virtudes nem dos defeitos e nem de nada que não seja a presença. É a ausência do morto que modifica todos os que permanecem no mundo. Chegar à casa da minha avó e não vê-la na área, sentada em sua cadeira de praia, a ler o jornal, chupando minuciosamente seu chimarrão. Não a ouvir ralhando com os cachorros. Não observar sua atenção ao noticioso do rádio de pilha. Não a ouvir censurando a mim, a minha mãe, a meu tio, a minha tia, a meus irmãos. Olhar para trás e não vê-la no portão dando mais uma orientação que se esquecera na despedida. Eis a ausência. A tristeza da perda de um pedaço de si mesmo. Eis o luto.

Observava o corpo vazio de minha avó quando senti de leve uma mão tocando meu ombro e pelo toque soube que não era a mão de minha mãe. Era de minha tia-avó que me olhava com piedade e em silêncio e eu poderia jurar que a ouvi dizer em seguida serei eu a próxima a estar com as narinas entupidas de algodão, olhos cerrados e cercada de flores e eu fiquei com pena dela e a abracei e tentei chorar mas não consegui. Sua mão ossuda e enrugada encravou-se em minha cabeça e pensei que um dia será minha tia depois minha mãe depois meu tio depois minha irmã depois eu depois mais nada, isso se alguma fatalidade não atropelasse a ordem que rezam os segundos. Apenas um mundo feito de ausências. Meu padrinho, que não é da família, mas é como se fosse, dirigiu-se a mim em tom jovial e disse algumas piadas amenas. Achei que não era uma boa decisão fazer piadas naquele momento. Senti-me ofendido, dei-lhe as costas e o deixei falando sozinho.

Não assisti ao padre rogar para que Deus levasse a alma de minha avó para junto dele, mas seus berros eram tão altos que lá de fora ouvi sua voz itálica. O esquife tinha quatro alças e de repente me vi segurando uma delas, a do lado direito, na dianteira do caixão. E ouvi soluços baixinhos e algumas lamúrias mais contundentes. E senti um engasgo. Fui acometido por uma cegueira repentina e não adiantou nada tentar segurar o pranto. As lágrimas brotavam grossas e caíam violentamente sobre meu rosto e sobre meu peito. Não havia mais como chorar em silêncio e nem como manter a feição sob controle. Tive medo de que faltasse força para segurar o caixão e que, ao vacilar, desmoronasse o corpo de minha avó, mas segurei firme e soluçava tanto que todos pararam de chorar, como se conferissem a mim a tristeza oficial pelo ocaso de minha avó.

Causou-me tristeza ver minha avó sendo sepultada em uma gaveta na parede, em vez de ser enterrada em uma cova no chão, na terra. Minha mãe me disse que aquela era a tumba da família. Não retruquei, mas decidi não deixá-la ser depositada lá quando chegasse sua hora e resolvi também anunciar ordem expressa a minha descendência sobre como proceder quando chegasse a minha. Causou-me náuseas o rosto impassível dos coveiros que jogavam pás de cimento para lacrar o túmulo. Agora, eu não sentia nada, a não ser uma ânsia para que a cerimônia terminasse.

O colorido das flores expostas nas bancas à saída do cemitério me devolveu à cidade de meu cotidiano. Agora, a mão que se apoiava sobre meu ombro era a de meu padrinho. Sempre risonho, convidou-me para beber um refrigerante. Na lancheria, até minha mãe ria de suas piadas. Pela janela, só o que eu conseguia enxergar eram as copas das árvores, tremulando ao vento, no cemitério onde jazia o corpo de minha avó.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

estética da expectativa

ou o banheiro do papa poderia ser melhor se você não dissesse que é ótimo


Se eu tivesse ido assistir O Banheiro do Papa sem maiores expectativa, apenas com aquela idéia de "vamos ver qual é", talvez tivesse saído do cinema estupefato e emocionadíssimo. Mas fui vê-lo condicionado por dezenas de recomendações e comentários dos mais positivos. Disseram-me que eu não poderia perder. E não perdi. O filme, mas sim a surpresa. Aliás, penso que a expectativa é um integrante fundamental da nossa recepção de obras de arte. Por exemplo, o que diríamos ao ler Ulisses e, sem sabermos tratar-se do colossal livro de Joyce, dissessem-nos que havia sido escrito por um jovem e esquisito escritor cachoeirinhense? O nome do autor, a indicação de conhecidos, as críticas publicadas na imprensa, tudo contribui para que comecemos a formar nossa opinião antes do contato com a obra. A própria obra às vezes condiciona ao nosso entendimento dela mesma. Fico pensando como seria ler – ou ver – Édipo Rei ou Macbeth sem saber nada a respeito. Deve ser uma sensação ímpar, que nunca teremos.

Voltando à vaca-fria, penso que a expectativa que criei em torno de O Banheiro do Papa arrefeceu um pouco o sentimento que tive em relação ao filme depois de vê-lo. Porém não ao ponto de não me fazer reconhecer que é um grande filme e de ver nele inúmeras qualidade. Como já se falou muito sobre a obra – tanto que condicionaram meu olhar – atenho-me a dois pontos que me pareceram muito interessantes.

Um deles diz respeito à complexidade das relações internas da família de Beto, o protagonista. Ele mora em um barraco com a mulher e a filha adolescente. A menina resiste a cumprir o destinos das mulheres daquele pequeno povoado fronteiriço do Uruguai e descarta fazer um curso de corte e costura, pois quer ir a Montevidéu fazer um curso de radialista. A mãe ganha alguns trocados lavando roupas e, quando o marido, muambeiro que atravessa a fronteira duas vezes por dia a bordo de uma bicicleta, sucumbe à fiscalização da fronteira, é ela quem sustenta o trio. Nesta pequena casa, as relação entre Beto, Carmem e a filha Silvia em curto espaço de tempo transitam entre o amor, a esperança e união para forjar um futuro um pouquinho melhor e a frustração, a incompreensão, o ódio e a violência. Este é um dos pontos altos da produção uruguaio-brasileira, pois poucos filmes conseguem urdir tão bem este entrelaçamento entre as vicissitudes da dimensão existencial humana e as contenções impostas pela realidade social.

Outro aspecto notável de O Banheiro do Papa é a desgraça de as pessoas terem de traírem seus próprios sentimentos e princípios em busca da sobrevivência. Ilustra isso a escolha de Beto – se é que podemos chamar escolha uma decisão em que as necessidades imediatas imperam sobre qualquer outra coisa – prestar serviços a Meleyo, o guarda da fronteira mais sacana e, por isso, odiado pela população de Melo. Era a única forma de obter recursos para a construção do banheiro a ser oferecido aos visitantes da cidade durante a visita do papa e que, nos planos de Beto, renderia muito dinheiro. Porém, a aliança com Meleyo representava uma traição ao povoado, à família, e a si próprio. Quando a filha descobre e conta à mãe, ambas se voltam contra o chefe da família que, sozinho e contrariado, não encontra forças para continuar no empreendimento salvador. Mas não se sabe – e certamente nem eles sabem – se é o amor, a compreensão, a esperança ou simplesmente a falta de outra possibilidade que os mantém sempre unidos e confiantes que o futuro será melhor. E será.


segunda-feira, 21 de julho de 2008

trilha sonora

Desprestigiado após o advento do cinema falado, o velho Francisco fora-se embora de Mirada das Rochas. Depois de vinte e seis anos trabalhando como responsável pelo acompanhamento musical dos filmes no cinema municipal, ele era agora desnecessário para animar as tardes de domingo. Ninguém sabia seu paradeiro. Além das imagens em movimento, nas películas modernas era possível ouvir as conversas, as risadas, os choros, os tiros e os motores dos carros. O músico não entendia como aquelas pessoas se contentavam com tanta realidade, como conseguiam viver sem “aquela elevação da vida que só a música pode proporcionar”. “O que sobra para os espectadores imaginar”, perguntava a si próprio. “Nada.”

Planejou para a última sessão do ano, no dia 23 de dezembro, seu retorno triunfal à cidade. Faria, junto a seus amigos mais próximos, “todos músicos da maior qualidade”, um concerto defronte ao cinema. Mas um concerto tão grandioso, que seria impossível ouvir o som do filme. No dizer de Francisco, um presente aos moradores de Mirada das Rocas. Postou-se atrás de uma árvore na praça central e, tão logo iniciou a sessão, fez sinal aos músicos para que se aproximassem. No programa, constavam peças de Beethoven, Bach, Mozart, Brahms. Planejara tocar enquanto durasse a exibição do filme. Antes, porém, de terminar a música escolhida para abrir a apresentação, a Nona de Beethoven, a turba enfurecido saía pela porta do cinema em sua direção, arremessando-lhe impropérios, pedras, frutas e pipocas. Só quando Francisco conseguiu desvencilhar-se da confusão foi que percebeu que lhe haviam quebrado o arco do violino.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

microcontos

Microconto é uma espécie de conto que anda meio na moda nos meios literários. Muitos entendem que microconto e miniconto são a mesma coisa, mas eu acho que não. Acho que o miniconto é apenas um conto pequeno, que cabe, por exemplo, em uma página. Mas o microconto é o ápice da concisão. Poucas frases, no máximo três. De preferência uma. O problema é que muita gente confunde microconto com poema em prosa, ou com piadinha, ou com o que daria pra chamar de sacada de publicitário. Mas para ser conto tem que haver uma narrativa, senão é qualquer outra coisa e pode até ter seu valor, mas conto não é. O guatemalteco Augusto Monterroso escreveu aquele que é considerado o melhor microconto. É assim: "Quando acordou o dinossauro ainda estava lá." Genial, mas prefiro este, de Hemingway: "Vende-se: sapatos de bebê, sem uso." E eu, de brincadeira, resolvi escrever alguns. Ei-los.


VISITA
Depois de espiar pelo olho mágico, tentou fugir pela janela e rachou a cabeça no meio-fio. Tudo por medo daquela velha magra vestida de preto que tocara a campainha.


AMOR VOLÁTIL
Respondeu sim. No minuto seguinte, não estava mais a fim.


ORGULHO
Ela chorava no avião. Ele vertia lágrimas no colchão. Ambos sem coragem de pedir perdão.