sábado, 23 de agosto de 2008

microcontos II

Encontrei esses na bagunça das minhas gavetas virtuais. Não lembro de tê-los escrito, mas lá vai.

MESA DE BAR
Horas a fio, esperando que a ausência se vá.

PESADELO
Sonhava dormir. Acordar duas vezes é demais.

GIRASSÓIS
Chuva. Cidade alagada. O jardim ficou à deriva.

REVOLUÇÃO
Matei o tirano, sobreviveu a tirania.

LEGÍTIMA DEFESA
Sei que é pecado violar uma tumba, mas eu estava perdendo a respiração.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ladrão de galinha

Estava escrevendo um texto sobre a decisão do STF de proibir algemas para os graúdos, mas lembrei de uma crônica do Verissimo de alguns anos atrás que diz tudo. Ei-la.

"Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e
levaram para a delegacia.
– Que vida mansa, heim, vagabundo ? Roubando galinha para ter o que
comer sem precisar trabalhar. Vai para cadeia!
– Não era para mim não. Era para vender.
– Pior. Venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio
estabelecido. Sem-vergonha!
– Mas eu vendia mais caro.
– Mais caro?
– Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as
minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as
minhas botavam ovos marrons.
– Mas eram as mesmas galinhas, safado.
– Os ovos das minhas eu pintava.
– Que grande pilantra...
Mas já havia um certo respeito no tom do delegado.
– Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...
– Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais
boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços
dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos
de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio.
Ou, no caso, um ovigopólio.
– E o que você faz com o lucro do seu negócio?
– Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei
alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui exclusividade no
suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do governo e
superfaturo os preços.
O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a
cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois
perguntou:
– Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está
milionário?
– Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que
tenho depositado ilegalmente no exterior.
– E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?
– Às vezes. Sabe como é.
– Não sei não, excelência. Me explique.
– É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa.
Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma
coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me
sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui preso,
finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova.
– O que e isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.
– Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
– Sim. Mas primário, e com esses antecedentes..."

Luís Fernando Verissimo

domingo, 10 de agosto de 2008

a alça do esquife

Existem fatos que nunca escapam da memória. Podem ficar meses, anos submersos na consciência. Mas um dia, sem aparente razão, eles emergem e ficam ali, reivindicando posto na biografia de seu tutor. Não raro surge em mim o cenário do primeiro funeral a que compareci, o de minha avó. Rapazote que ainda não perdera a ilusão de que a vida se leva na flauta, dirigi-me ao cemitério ensaiando ares de tristeza que deveras não sentia. Tinha a idéia da solenidade de tais eventos e vagamente me censurei pela ausência de sensibilidade própria à situação. Sentia-me desprotegido ao ver minha mãe chorando e era só isso que me desgostava no momento.

Logo à entrada, achei bonito o desfile de óculos escuros, lenços e olhos marejantes. O salão onde se realizava o velório recendia a flores, café e vela. Uma fileira de cadeiras parecidas com as de salas de aula se estendia em todo entorno do recinto. Pessoas, em duplas ou trios, conversavam em voz baixa. Uma parenta distante alegou tonturas e deixou a sala às pressas. Minha mãe foi conferenciar com a minha tia. Ao longe, parecia que elas disputavam quem trazia os olhos mais inchados.

Ao centro do salão, jazia o corpo de minha avó, acomodado no estofamento interno de um caixão muito escuro, com flores e coroas ao redor. Aproximei-me lentamente e vi dois chumaços de algodão tapando os orifícios do nariz. Decorridos todos estes anos, há detalhes que estão marcados em minha memória de maneira cinematográfica, e outros que se perderam nos desvãos da consciência. A roupa que trajava minha avó, por exemplo, ignoro. Mas suas mãos trançadas segurando um rosário são tão reais no pensamento que parecem estar ainda agora diante de meus olhos.

O mais interessante das reminiscências, porém, são as de conceitos. Ao ver minha avó deitada no esquife, tive a plena certeza de que não era ela que estava ali. De que tudo de peculiar, idiossincrático e próprio da velha faltava naquele corpo. Não sou dado a espiritismos ou teologias, mas ali eu percebi que o que minha família velava não era nada. Era apenas matéria desprovida de ser, como uma palavra a que não se pode conferir nenhum significado. Se eu avistasse minha avó em meio ao séqüito que dali a pouco acompanharia a condução do féretro até a sepultura, não me causaria terror, tamanha era a ausência dela naquele defunto.

Nunca tive maiores intimidades com minha avó. Aliás, ela era uma pessoa que não se prestava a intimidades com ninguém. Muito rígida quanto às questões disciplinares e ferrenha guardiã da magra aposentadoria que recebia – não mencionarei a palavra avara porque funeral é o momento de exaltar as qualidades positivas do morto e enterrar as negativas junto com seu corpo. De pouco falar e menos ainda de escutar, minha avó me dedicava, creio, menos afeto do que a uma outra neta, minha prima. Motivos para isto há, mas não é o caso de arrolá-los. Digo apenas que, apesar destas considerações, minha avó me despertava certo fascínio que, àquela época, eu não entendia. Mas as ruminações que me tomaram a partir de seu enterro me esclareceram. O que me fascinava – e de resto creio que fascinava a todos que com ela conviveram – era seu gênio forte de égua indomável. A faísca do seu olhar e o tijolo da sua voz imperavam, sempre. Por vezes, excedia-se e flertava com a crueldade, mas como já foi dito, é das virtudes que se fala nessas horas.

Pois foi naquela tarde ensolarada e fria de agosto que percebi a realidade das pessoas que partem. Não se sente saudade das virtudes nem dos defeitos e nem de nada que não seja a presença. É a ausência do morto que modifica todos os que permanecem no mundo. Chegar à casa da minha avó e não vê-la na área, sentada em sua cadeira de praia, a ler o jornal, chupando minuciosamente seu chimarrão. Não a ouvir ralhando com os cachorros. Não observar sua atenção ao noticioso do rádio de pilha. Não a ouvir censurando a mim, a minha mãe, a meu tio, a minha tia, a meus irmãos. Olhar para trás e não vê-la no portão dando mais uma orientação que se esquecera na despedida. Eis a ausência. A tristeza da perda de um pedaço de si mesmo. Eis o luto.

Observava o corpo vazio de minha avó quando senti de leve uma mão tocando meu ombro e pelo toque soube que não era a mão de minha mãe. Era de minha tia-avó que me olhava com piedade e em silêncio e eu poderia jurar que a ouvi dizer em seguida serei eu a próxima a estar com as narinas entupidas de algodão, olhos cerrados e cercada de flores e eu fiquei com pena dela e a abracei e tentei chorar mas não consegui. Sua mão ossuda e enrugada encravou-se em minha cabeça e pensei que um dia será minha tia depois minha mãe depois meu tio depois minha irmã depois eu depois mais nada, isso se alguma fatalidade não atropelasse a ordem que rezam os segundos. Apenas um mundo feito de ausências. Meu padrinho, que não é da família, mas é como se fosse, dirigiu-se a mim em tom jovial e disse algumas piadas amenas. Achei que não era uma boa decisão fazer piadas naquele momento. Senti-me ofendido, dei-lhe as costas e o deixei falando sozinho.

Não assisti ao padre rogar para que Deus levasse a alma de minha avó para junto dele, mas seus berros eram tão altos que lá de fora ouvi sua voz itálica. O esquife tinha quatro alças e de repente me vi segurando uma delas, a do lado direito, na dianteira do caixão. E ouvi soluços baixinhos e algumas lamúrias mais contundentes. E senti um engasgo. Fui acometido por uma cegueira repentina e não adiantou nada tentar segurar o pranto. As lágrimas brotavam grossas e caíam violentamente sobre meu rosto e sobre meu peito. Não havia mais como chorar em silêncio e nem como manter a feição sob controle. Tive medo de que faltasse força para segurar o caixão e que, ao vacilar, desmoronasse o corpo de minha avó, mas segurei firme e soluçava tanto que todos pararam de chorar, como se conferissem a mim a tristeza oficial pelo ocaso de minha avó.

Causou-me tristeza ver minha avó sendo sepultada em uma gaveta na parede, em vez de ser enterrada em uma cova no chão, na terra. Minha mãe me disse que aquela era a tumba da família. Não retruquei, mas decidi não deixá-la ser depositada lá quando chegasse sua hora e resolvi também anunciar ordem expressa a minha descendência sobre como proceder quando chegasse a minha. Causou-me náuseas o rosto impassível dos coveiros que jogavam pás de cimento para lacrar o túmulo. Agora, eu não sentia nada, a não ser uma ânsia para que a cerimônia terminasse.

O colorido das flores expostas nas bancas à saída do cemitério me devolveu à cidade de meu cotidiano. Agora, a mão que se apoiava sobre meu ombro era a de meu padrinho. Sempre risonho, convidou-me para beber um refrigerante. Na lancheria, até minha mãe ria de suas piadas. Pela janela, só o que eu conseguia enxergar eram as copas das árvores, tremulando ao vento, no cemitério onde jazia o corpo de minha avó.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

estética da expectativa

ou o banheiro do papa poderia ser melhor se você não dissesse que é ótimo


Se eu tivesse ido assistir O Banheiro do Papa sem maiores expectativa, apenas com aquela idéia de "vamos ver qual é", talvez tivesse saído do cinema estupefato e emocionadíssimo. Mas fui vê-lo condicionado por dezenas de recomendações e comentários dos mais positivos. Disseram-me que eu não poderia perder. E não perdi. O filme, mas sim a surpresa. Aliás, penso que a expectativa é um integrante fundamental da nossa recepção de obras de arte. Por exemplo, o que diríamos ao ler Ulisses e, sem sabermos tratar-se do colossal livro de Joyce, dissessem-nos que havia sido escrito por um jovem e esquisito escritor cachoeirinhense? O nome do autor, a indicação de conhecidos, as críticas publicadas na imprensa, tudo contribui para que comecemos a formar nossa opinião antes do contato com a obra. A própria obra às vezes condiciona ao nosso entendimento dela mesma. Fico pensando como seria ler – ou ver – Édipo Rei ou Macbeth sem saber nada a respeito. Deve ser uma sensação ímpar, que nunca teremos.

Voltando à vaca-fria, penso que a expectativa que criei em torno de O Banheiro do Papa arrefeceu um pouco o sentimento que tive em relação ao filme depois de vê-lo. Porém não ao ponto de não me fazer reconhecer que é um grande filme e de ver nele inúmeras qualidade. Como já se falou muito sobre a obra – tanto que condicionaram meu olhar – atenho-me a dois pontos que me pareceram muito interessantes.

Um deles diz respeito à complexidade das relações internas da família de Beto, o protagonista. Ele mora em um barraco com a mulher e a filha adolescente. A menina resiste a cumprir o destinos das mulheres daquele pequeno povoado fronteiriço do Uruguai e descarta fazer um curso de corte e costura, pois quer ir a Montevidéu fazer um curso de radialista. A mãe ganha alguns trocados lavando roupas e, quando o marido, muambeiro que atravessa a fronteira duas vezes por dia a bordo de uma bicicleta, sucumbe à fiscalização da fronteira, é ela quem sustenta o trio. Nesta pequena casa, as relação entre Beto, Carmem e a filha Silvia em curto espaço de tempo transitam entre o amor, a esperança e união para forjar um futuro um pouquinho melhor e a frustração, a incompreensão, o ódio e a violência. Este é um dos pontos altos da produção uruguaio-brasileira, pois poucos filmes conseguem urdir tão bem este entrelaçamento entre as vicissitudes da dimensão existencial humana e as contenções impostas pela realidade social.

Outro aspecto notável de O Banheiro do Papa é a desgraça de as pessoas terem de traírem seus próprios sentimentos e princípios em busca da sobrevivência. Ilustra isso a escolha de Beto – se é que podemos chamar escolha uma decisão em que as necessidades imediatas imperam sobre qualquer outra coisa – prestar serviços a Meleyo, o guarda da fronteira mais sacana e, por isso, odiado pela população de Melo. Era a única forma de obter recursos para a construção do banheiro a ser oferecido aos visitantes da cidade durante a visita do papa e que, nos planos de Beto, renderia muito dinheiro. Porém, a aliança com Meleyo representava uma traição ao povoado, à família, e a si próprio. Quando a filha descobre e conta à mãe, ambas se voltam contra o chefe da família que, sozinho e contrariado, não encontra forças para continuar no empreendimento salvador. Mas não se sabe – e certamente nem eles sabem – se é o amor, a compreensão, a esperança ou simplesmente a falta de outra possibilidade que os mantém sempre unidos e confiantes que o futuro será melhor. E será.