domingo, 10 de agosto de 2008

a alça do esquife

Existem fatos que nunca escapam da memória. Podem ficar meses, anos submersos na consciência. Mas um dia, sem aparente razão, eles emergem e ficam ali, reivindicando posto na biografia de seu tutor. Não raro surge em mim o cenário do primeiro funeral a que compareci, o de minha avó. Rapazote que ainda não perdera a ilusão de que a vida se leva na flauta, dirigi-me ao cemitério ensaiando ares de tristeza que deveras não sentia. Tinha a idéia da solenidade de tais eventos e vagamente me censurei pela ausência de sensibilidade própria à situação. Sentia-me desprotegido ao ver minha mãe chorando e era só isso que me desgostava no momento.

Logo à entrada, achei bonito o desfile de óculos escuros, lenços e olhos marejantes. O salão onde se realizava o velório recendia a flores, café e vela. Uma fileira de cadeiras parecidas com as de salas de aula se estendia em todo entorno do recinto. Pessoas, em duplas ou trios, conversavam em voz baixa. Uma parenta distante alegou tonturas e deixou a sala às pressas. Minha mãe foi conferenciar com a minha tia. Ao longe, parecia que elas disputavam quem trazia os olhos mais inchados.

Ao centro do salão, jazia o corpo de minha avó, acomodado no estofamento interno de um caixão muito escuro, com flores e coroas ao redor. Aproximei-me lentamente e vi dois chumaços de algodão tapando os orifícios do nariz. Decorridos todos estes anos, há detalhes que estão marcados em minha memória de maneira cinematográfica, e outros que se perderam nos desvãos da consciência. A roupa que trajava minha avó, por exemplo, ignoro. Mas suas mãos trançadas segurando um rosário são tão reais no pensamento que parecem estar ainda agora diante de meus olhos.

O mais interessante das reminiscências, porém, são as de conceitos. Ao ver minha avó deitada no esquife, tive a plena certeza de que não era ela que estava ali. De que tudo de peculiar, idiossincrático e próprio da velha faltava naquele corpo. Não sou dado a espiritismos ou teologias, mas ali eu percebi que o que minha família velava não era nada. Era apenas matéria desprovida de ser, como uma palavra a que não se pode conferir nenhum significado. Se eu avistasse minha avó em meio ao séqüito que dali a pouco acompanharia a condução do féretro até a sepultura, não me causaria terror, tamanha era a ausência dela naquele defunto.

Nunca tive maiores intimidades com minha avó. Aliás, ela era uma pessoa que não se prestava a intimidades com ninguém. Muito rígida quanto às questões disciplinares e ferrenha guardiã da magra aposentadoria que recebia – não mencionarei a palavra avara porque funeral é o momento de exaltar as qualidades positivas do morto e enterrar as negativas junto com seu corpo. De pouco falar e menos ainda de escutar, minha avó me dedicava, creio, menos afeto do que a uma outra neta, minha prima. Motivos para isto há, mas não é o caso de arrolá-los. Digo apenas que, apesar destas considerações, minha avó me despertava certo fascínio que, àquela época, eu não entendia. Mas as ruminações que me tomaram a partir de seu enterro me esclareceram. O que me fascinava – e de resto creio que fascinava a todos que com ela conviveram – era seu gênio forte de égua indomável. A faísca do seu olhar e o tijolo da sua voz imperavam, sempre. Por vezes, excedia-se e flertava com a crueldade, mas como já foi dito, é das virtudes que se fala nessas horas.

Pois foi naquela tarde ensolarada e fria de agosto que percebi a realidade das pessoas que partem. Não se sente saudade das virtudes nem dos defeitos e nem de nada que não seja a presença. É a ausência do morto que modifica todos os que permanecem no mundo. Chegar à casa da minha avó e não vê-la na área, sentada em sua cadeira de praia, a ler o jornal, chupando minuciosamente seu chimarrão. Não a ouvir ralhando com os cachorros. Não observar sua atenção ao noticioso do rádio de pilha. Não a ouvir censurando a mim, a minha mãe, a meu tio, a minha tia, a meus irmãos. Olhar para trás e não vê-la no portão dando mais uma orientação que se esquecera na despedida. Eis a ausência. A tristeza da perda de um pedaço de si mesmo. Eis o luto.

Observava o corpo vazio de minha avó quando senti de leve uma mão tocando meu ombro e pelo toque soube que não era a mão de minha mãe. Era de minha tia-avó que me olhava com piedade e em silêncio e eu poderia jurar que a ouvi dizer em seguida serei eu a próxima a estar com as narinas entupidas de algodão, olhos cerrados e cercada de flores e eu fiquei com pena dela e a abracei e tentei chorar mas não consegui. Sua mão ossuda e enrugada encravou-se em minha cabeça e pensei que um dia será minha tia depois minha mãe depois meu tio depois minha irmã depois eu depois mais nada, isso se alguma fatalidade não atropelasse a ordem que rezam os segundos. Apenas um mundo feito de ausências. Meu padrinho, que não é da família, mas é como se fosse, dirigiu-se a mim em tom jovial e disse algumas piadas amenas. Achei que não era uma boa decisão fazer piadas naquele momento. Senti-me ofendido, dei-lhe as costas e o deixei falando sozinho.

Não assisti ao padre rogar para que Deus levasse a alma de minha avó para junto dele, mas seus berros eram tão altos que lá de fora ouvi sua voz itálica. O esquife tinha quatro alças e de repente me vi segurando uma delas, a do lado direito, na dianteira do caixão. E ouvi soluços baixinhos e algumas lamúrias mais contundentes. E senti um engasgo. Fui acometido por uma cegueira repentina e não adiantou nada tentar segurar o pranto. As lágrimas brotavam grossas e caíam violentamente sobre meu rosto e sobre meu peito. Não havia mais como chorar em silêncio e nem como manter a feição sob controle. Tive medo de que faltasse força para segurar o caixão e que, ao vacilar, desmoronasse o corpo de minha avó, mas segurei firme e soluçava tanto que todos pararam de chorar, como se conferissem a mim a tristeza oficial pelo ocaso de minha avó.

Causou-me tristeza ver minha avó sendo sepultada em uma gaveta na parede, em vez de ser enterrada em uma cova no chão, na terra. Minha mãe me disse que aquela era a tumba da família. Não retruquei, mas decidi não deixá-la ser depositada lá quando chegasse sua hora e resolvi também anunciar ordem expressa a minha descendência sobre como proceder quando chegasse a minha. Causou-me náuseas o rosto impassível dos coveiros que jogavam pás de cimento para lacrar o túmulo. Agora, eu não sentia nada, a não ser uma ânsia para que a cerimônia terminasse.

O colorido das flores expostas nas bancas à saída do cemitério me devolveu à cidade de meu cotidiano. Agora, a mão que se apoiava sobre meu ombro era a de meu padrinho. Sempre risonho, convidou-me para beber um refrigerante. Na lancheria, até minha mãe ria de suas piadas. Pela janela, só o que eu conseguia enxergar eram as copas das árvores, tremulando ao vento, no cemitério onde jazia o corpo de minha avó.

5 comentários:

Anônimo disse...

very nice! hahahahaha

Anônimo disse...

Muito bom o seu blog...
Beijos.
fabiana

Anônimo disse...

"funeral é o momento de exaltar as qualidades positivas do morto e enterrar as negativas junto com seu corpo."

virou morto, virou santo. ahhaha


mto tri. :D

Anônimo disse...

na ativa!

zézinho

disse...

Tô sem palavras.
Beijão, Jô.