segunda-feira, 6 de junho de 2011

sobre anjos e grilos e passarinhos

Assisti ao espetáculo Sobre Anjos e Grilos, uma homenagem-adaptação-recriação da obra do poeta Mario Quintana concebida, dirigida e interpretada por Deborah Finocchiaro, a atriz mais Mario Quintana do Rio Grande do Sul. Durante cerca de uma hora, a artista só sobre o palco praticamente nu – apenas com uma máquina de escrever e um pano sobre o qual são projetadas imagens alegóricas sobre o universo quintanesco – traduz para fora das páginas a essência poética deste que é considerado o maior poeta sul-riograndense. E o faz com desobediente fidelidade e parcimoniosa grandeza.

A nudez despojada e ultrajante do palco dá espaço à cuidadosa e exata iluminação que compõe o ritmo e o tom da peça, aliada às gravuras temáticas da artista plástica Zoravia Bettiol, estas alinhadas ao tom de singela loucura que caracteriza o poeta-tema do espetáculo. Envolta neste ambiente, Deborah trilha o percurso onírico-material de Mario Quintana, a um só tempo leve e fustigante, debochado e melancólico, metódico e anárquico.

À vontade no papel de porta-voz cênica do poeta coestaduano, Deborah sabe (sabe?) que ela, seu trabalho, sua trajetória, funde-se ao de Quintana, não por uma aproximação pré-concebida ou ainda pré-identificável, mas por uma questão que, forçosa, foge à intenção e mesmo à consciência do artista. Ambos construíram suas história neste confim do Brasil, longe dos holofotes da exposição e consagração midiática que confunde caricaturalmente artista e celebridade de coisa nenhuma.

Ambos, Deborah e Mario, ficaram. Fundiram-se à paisagem e ao cotidiano desta distante Porto Alegre ao ponto de muitas vezes não sabermos distinguir o que estes artistas revelam da cidade e o que através dela dizem de si próprios. E deste microcosmo às vezes tão pequeno, às vezes tão provinciano, às vezes tão mesmo, leram e cantaram o intangível universal.

Não sendo – pra minha vergonha e tristeza – um frequentador assíduo de teatro, fui tocado pela fina simplicidade do espetáculo, que teve o cuidado de sobretudo nisso aproximar-se de Quintana, o poeta pelo qual tive meu primeiro contato com a poesia. Aos cinco anos de idade, encasquetei com um pano de prato comemorativo aos 80 anos do poeta que minha mãe ganhara de brinde. Neste pano estava escrito o famoso poema “Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho, / Eles passarão... / Eu passarinho!”. Aquilo para mim não fazia qualquer sentido e eu me intrigava e não entendia como alguém podia chamar aquilo de poesia. De tanto ensimesmar com o enigma, aconteceu-me aquilo que se chama de experiência estética. Um pano de prato, um palco nu, Deborah nele, Quintana sobre a máquina de escrever, eu passarinho

Imagem: Zoravia Bettiol. Mario-Anjo Disfarçado de Homem. Série Trans-figurações de Quintana. Monotipia 2006

3 comentários:

Deborah disse...

Wagner, que coisa mais linda! Fico emocionada e agradecida a tudo, a vida... um grande beijo meu querido!
com carinho imenso,
Deborah

Raquel Leão Luz disse...

A peça é linda e o texto também. Um beijo, Wagner.

Anônimo disse...

Você, Deborah, Quintana, Caeiro: "Esses sons me chegavam confundindo-se uns aos outros".