terça-feira, 25 de agosto de 2009

funeral de um lavrador

















Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida

João Cabral de Melo Neto



O jornal Zero Hora do dia 22 de agosto de 2009 noticiou a execução pelo Estado do camponês sem terra Elton Brum da Silva, em São Gabriel (RS), com uma reportagem intitulada “MST ganha seu mártir”. O curto, impactante e decisivo título da matéria induz – ou busca induzir – o leitor a entender que o episódio não só teve saldo positivo para o movimento dos sem-terra como por ele foi planejado e provocado.

Subentende-se, portanto, pelo discurso contido em Zero Hora, que, se houve erro da polícia, este não foi ter matado um ser humano, mas ter presenteado o MST com um mártir. Como se de mártires os que lutam pela reforma agrária ainda precisassem – vide o massacre em Eldorado dos Carajás e tantas outras ações da polícia e de capangas em defesa do sagrado e inalienável direito dos latifundiários à propriedade.


Após trazer, em nome da protocolar imparcialidade, a informação de que testemunhas atribuíram a autoria do disparo a um oficial da Brigada Militar, o texto prontamente trata de desqualificá-la: “Grande parte das testemunhas é ligada ao MST, que já deu início a uma primeira estratégia de reação: orientou seus militantes a soterrarem com depoimentos os cartórios da Delegacia da Polícia Civil de São Gabriel, que investigará a morte. Os testemunhos repetem que o autor do disparo é da BM”. A reportagem não teve curiosidade de apurar se, por acaso, os policiais que participaram da operação foram orientados por seus superiores sobre a versão que deveriam sustentar para livrar a cara de comandados e, principalmente, comandantes sobre a responsabilidade pela ação criminosa?


No decorrer da notícia, Zero Hora continua martelando a ideia de que o MST só tem motivos para festejar o ocorrido e aproveitá-lo politicamente: “O segundo passo dos militantes poderá ser uma grande movimentação em direção à fronteira, ainda sem data definida.”


Nenhuma linha sobre a dor de familiares e companheiros da vítima, como é tão comum em notícias cuja personagem violentamente assassinada provém da chamada classe média. Aliás, não lembro alguma vez ter visto Zero Hora ou qualquer outro veículo da grande imprensa decretar, quando do homicídio de um membro da tal classe média, que os setores conservadores da sociedade ganharam um mártir em sua sanha por pena de morte, redução da maioria penal ou tolerância zero nas operações policiais em favelas e guetos. Em suma, para que o Estado legitime, cada vez mais, a sobreposição do direito à propriedade em detrimento do direito à vida.


O crime

O militante sem-terra Elton Brum da Silva, 44 anos, tombou varado nas costas por um tiro de espingarda calibre 12. O crime ocorreu durante operação da Brigada Militar para cumprir ordem de reintegração de posse concedida pela Justiça ao fazendeiro Alfredo Southall, cujo latifúndio soma mais de 13 mil hectares.

Nenhuma arma de fogo foi encontrada pela polícia em posse dos sem-terra que ocupavam a fazenda. O próprio governo do Rio Grande do Sul admite que o tiro partiu da Brigada Militar.


Ao que tudo indica, o autor do disparo ostenta uma alta divisa no braço que puxou o gatilho. Em
entrevista divulgada pela Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), o ex-ouvidor agrário do governo do RS Adão Paiani disse ter ouvido de fontes policiais que o tiro à queima roupa contra Elton Brum da Silva foi disparado por um alto oficial da brigada. "Se essa conta for debitada a um soldado da Brigada, eu, como filho de um soldado da Brigada, vou apontar o nome do autor do homicídio", afirmou Adão Paiani.

O jornal classifica reiteradamente a ação como “desastrada”, e não como resultado de uma visão política e governamental de criminalização dos movimentos. No entanto, as fotos e relatos da operação de remoção do acampamento de trabalhadores sem-terra - humilhação e violência contra os manifestantes -, e o histórico de repressão por parte do atual governo do RS a manifestações como as de estudantes e sindicalistas prova que o tiro fatal contra o militante é antes uma consequência que um desvio do pensamento do poder Executivo gaúcho.


Sem argumentos para justificar a ação, a saída é desqualificar seu alvo: “Os sem-terra invadiram a Southall no dia 12 e, como de costume, protelaram sua retirada da fazenda. Contrariaram a ordem judicial para que evacuassem a área. Esticaram até o ponto de ruptura a tênue linha que separa a legalidade da clandestinidade e da desobediência metódica.” No discurso do jornal, manter latifúndios improdutivos está abrigado sob a legalidade, embora não seja isso que reze a Constituição Federal, e lutar por reforma agrária e por acesso à terra, direitos previstos pela mesma Constituição, é clandestina desobediência.





Foto: César Soares/extraída do Portal Terra

12 comentários:

Paulo Crochemore da Silva disse...

Uma baita análise do discurso subterrâneo da ZH que tantas cabeças faz direta ou indiretamente.
E uma bela escrita que nos coloca numa possível perspectiva sensível sem deixar de ser crítica.

Gostei muito, meu caro. Muito mesmo. Vou passar adiante.

Raquel Leão Luz disse...

Lindo texto. Com sensibilidade e bons argumentos conseguiste recuperar outras vozes (quase sempre silenciadas)de um discurso.
Gostei demais!

Anônimo disse...

Parabéns pela análise, Wagner. Abraço.
Júlia
www.catherinedejupiter.blogspot.com

Caroline Valada Becker disse...

Excelente postagem. Estava com saudade de poder te ler.
Jornalismo(ista) inteligente.

Grande abraço.

Anônimo disse...

acho o texto interessante. mais ainda o lugar que deste a cabral nele. sombra boa.

Rafael Nardini disse...

Para alguém que está prestes a se formar, dói no fígado o nível de distorção e politização às avessas a que se prestam os meios de comunicação mais convencionais (televisão e jornais, principalmente). Na mesma linha depreciativa do ZH, a Band pôs no ar um editorial em que urruva aos latifundiários a tirar na marra um presidente eleito de seu gabinete por conta da recente alteração nos índices de produtividade.

Anônimo disse...

Lindo, inteligente, crítico, analítico: tu sempre especialmente bom.

Vozes, vozes... tantas vozes em um discurso maquiado de unívoco e imparcial.

Abraços, querido

josé-virgílio disse...

surge lá no blog

Eduarda Cardoso Alves disse...

Fizeram de um fato, uma notícia... e desse notícia, adicionaram outro valor, excluindo concerteza a tristeza dessa família. Isso é lamentável!

josé-virgílio disse...

aguardando postagem

josé-virgílio disse...

e eu ainda espero texto aqui.

Raquel Leão Luz disse...

quero ler pelo menos um novo texto aqui... sei que tem vários escondidos por aí e vários também são os motivos pra escrever...
"toco tu boca"