Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.
Alberto Caeiro
Senti, mais com a imaginação que com o olfato, o cheiro do quentão que por certo era preparado por aqueles rapazes ávidos por uma alegria à toa. Uma leva mais forte, com uma boa quantidade de aguardente adicionada à mistura. Outra, para os menos beberrões, mais doce e com menor teor alcoólico. Imaginei o cardápio daquela celebração composto por pinhão, pipoca, rapadura e, enfim, o habitual em festas do mesmo tema.
O grupo não tardou a se multiplicar, na mesma proporção do volume produzido pela algazarra de suas vozes e risadas, permeada por uma música indistinta para a distância em que eu me encontrava da folia. Esses sons me chegavam confundindo-se uns aos outros, mesclando-se, como uma imagem de que, ao longe, não se distingue cada objeto separadamente, tornando-se para quem vê uma imprecisa massa disforme.
Senti uma pequena alegria por aqueles rapazes, lembrei-me de memoráveis festejos de que fiz parte no passado, e remoendo a memória, não vi chegando, dominadora, a inveja. É óbvio que só agora, com a frieza da análise e a ajuda da linguagem escrita, chamo de inveja aquilo que senti. Naquele momento, o crescente despeito pelo deleite alheio fora tratado por mim como uma legítima análise crítica daquele festim tão cafona, tão artificial, e tão fracassado.
Fracassado sim, ou alguém chamaria de bem-sucedida uma festa junina que não conte nem mesmo com uma fogueira? A euforia dos jovens que chegaram primeiro e tão entusiasticamente prepararam o ambiente não durou muito. O que se via depois era uma alegria forçada, pouco convincente, talvez porque, como pude notar, o número de convivas homens superasse o de mulheres na proporção de 3 ou 4 por uma. Para piorar, as poucas moças que compareceram digamos que não primavam pela beleza.
Na certa, os organizadores do evento contavam com um contingente muito maior de mulheres, dado o número de amigas que, apesar de garantir que estariam presentes, não deram o ar da graça. Algumas delas já estavam decididas a não comparecer desde quando confirmaram presença, outras o fizeram com a real intenção de participar do festejo, mas depois, acabaram desistindo, por terem arranjado outro entretenimento mais auspicioso ou mesmo por, pensando melhor, considerarem ridícula a coisa toda.
O fato é que a festa preparada para ser uma apoteose de diversão mixou quando ainda tentava engrenar. E mesmo da distância da minha janela pude notar a crescente onda de bocejos e muxoxos. Não sei se realmente vi ou metaforicamente imaginei, mas até a lua sumiu, vencida por alguma nuvem. Não demorou para o recolhimento total dos participantes daquela noite de S. João. E daquela festa sobrou um terraço com bandeirolas penduradas balançando para ninguém. Naquela noite, adormeci lentamente, envolvido por um silêncio absoluto, sem fogueiras, sem gargalhadas, sem baques de salto, sem grito casual de quem não sabe que eu existo.
Imagem: GUIGNARD, Alberto da Veiga. NOITE DE SÃO JOÃO, 1961, Série Paisagem Imaginante, Óleo/tela, 61 x 46 cm